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Relato de experiência sobre o faz de conta.
Yaeko Nakadakari Tsuhako.
Ao assumir a turminha do Jardim 1 no ano de 2004, crianças com 4 anos de idade, depois de alguns anos trabalhando com crianças maiores, de cinco e seis anos, vi-me diante de alguns desafios: Como é a criança aos 4 anos? Quais suas necessidades? Que ações seriam mais apropriadas para a faixa etária?
Através de tais desafios me propus a pesquisar e estudar algumas teorias psicológicas sobre a criança e o seu desenvolvimento, a concepção histórica sobre o que é ser criança e como este conceito foi mudando as práticas com as mesmas, para melhor compreender e agir sobre o meu novo grupo de alunos.
Porém, no início fiquei um pouco insegura, pois não sabia ao certo o que fazer, e o meu ponto de partida foi a observação e o registro diário de tudo o que acontecia na sala de aula, como as atividades, o comportamento dos alunos, as preferências do grupo, o que dava certo ou errado, as minhas angústias e dúvidas.
Munida com tais instrumentos comecei a pesquisar, busquei orientação, descobri como se constroem alguns sistemas de representação nessa faixa etária, como aprendem, e só assim foi possível fazer algumas articulações entre a teoria e a prática, aprendendo sobre as crianças do meu grupo e pensando em uma ação educativa mais consciente e mais adequada.
Ao descobrir a grande importância do brincar e principalmente do faz-de-conta para o desenvolvimento infantil, logo no início do ano, através do planejamento, foi possível reservar um lugar especial na rotina e na organização espacial para desenvolver o tema.
Sabendo que a organização da sala de aula reflete a nossa concepção de educação e de criança, não poderia manter o modelo de sala de aula que estava presente, pois havia mesas e cadeiras ocupando a maior parte da sala, os jogos eram iguais para todos, não oportunizando as trocas entre os mesmos, todos os materiais ficavam guardados longe do alcance da criança, tornando o professor centralizador das ações, dificultando o exercício da autonomia no momento de escolher o material e a brincadeira. Havia pouco espaço para locomoção, para as atividades com movimento e para a roda da conversa. O espaço não atendia as necessidades da criança pequena, que requer mais amplitude para os seus movimentos.
Não havia brinquedos comuns como bonecas ou carrinhos, apenas jogos de encaixe ou brinquedos pedagógicos, que também são importantes no ambiente escolar, porém, as opções se restringiam apenas a tais materiais.
Assim, se é de suma importância para a escola possibilitar o exercício da autonomia, desenvolvimento da identidade e a interação com o outro, o que fazer? No que a brincadeira e a organização espacial podem contribuir?
Percebendo que a sala não estava de acordo com a minha concepção do que é o trabalho com crianças de 4 anos, parti para algumas mudanças na arrumação da mesma, buscando maior amplitude no espaço, para possibilitar o movimento e, que fosse ao mesmo tempo um local acolhedor.
Iniciei uma campanha para obter móveis para organizar cantinhos com livros e jogos, busquei doações de brinquedos, tecidos, fantasias, caixas de frutas, etc. Pois, quando existe a dificuldade em obter recursos financeiros, somos obrigados a inventar e recriar, e assim, fui transformando caixas de madeira em estantes, colchões em camas, painéis em suportes para cabanas. Recebi várias doações para compor o cantinho do faz-de-conta, como sapatos, roupas, tecidos, chapéus, pentes, etc.
As carteiras ganharam nova distribuição em forma de U, para deixar um espaço ao meio para os tapetes, no qual realizamos a roda da conversa, momento em que as crianças contam suas novidades, conversam sobre temas variados, ou falam de suas hipóteses sobre algum tema específico colocado por mim, contam histórias, expressam suas preferências, confirmam a sua presença e tomam conhecimento sobre a rotina do dia. Também é no tapete que realizamos algumas atividades que envolvem a música e o movimento.
Deixei uma parte da sala para a montagem de alguns cantinhos, assim, optei pelo canto do faz-de-conta, com caixas, penteadeira, chapeleira com chapéus, cestos com tecidos, estante com bonecas, carrinhos, panelinhas e jogos de montar. Assim organizado este canto pude oferecer brinquedos diversificados ao mesmo tempo em um só espaço propiciando a escolha e a interação entre as crianças que serão, todo momento, convidadas a brincar junto com o outro, criando situações e jogos coletivos.
E em outro canto montei uma cabana para as crianças terem mais um espaço para brincar de faz-de-conta e também para a brincadeira de esconder que eles adoram. Percebo que nesta ação lúdica as crianças vão construindo muitas imagens mentais, por exemplo, com o ato de se esconder, a criança recorrerá a imagem mental para se lembrar de quem está escondido, quem está faltando na sala, de quem é a voz dentro da cabana e assim por diante.
Também providenciei um espelho, que é um bom instrumento para trabalhar a imagem e identidade. Através das brincadeiras que faz na frente do espelho, a criança começa a reconhecer sua imagem e as características físicas que integram a sua pessoa e que a diferem dos demais. É também na frente dele que a criança irá se fantasiar, fazer maquiagens sozinhas, brincar de ser pessoas diferentes, admirar-se, experimentando diversas possibilidades.
Durante a brincadeira do faz de conta, as crianças se movimentam bastante pela sala, conversam e se o professor tiver uma visão de que disciplina é sinônimo de silêncio, a expressão e independência das crianças poderão ser comprometidas. Nesse momento, é importante que as crianças possam dispor das cadeiras e mesas a vontade, na construção de camas, cabanas, pistas para carrinhos, montagens de trens, casas entre outros. Como educadora devo preocupar-me em ajudá-los a concretizar suas idéias e alertá-los para os perigos de algumas propostas. Só assim, os vários personagens ganharão vida, com possibilidade de movimento, dentro de um cenário criativo.
A arrumação da sala após uma atividade é muito importante, pois as crianças terão a oportunidade de aprender a cooperar e perceber que a organização é responsabilidade de todos. O professor pode iniciar como modelo, guardando junto e explicando a organização, o como e onde cada objeto será guardado, observando e orientando as ações das crianças e, com o tempo, elas passarão a guardar tudo sem dificuldades.
Essa atividade também possibilita que elas percebam que são capazes de realizar ações de forma independente como guardar os brinquedos e os jogos, varrer a sala, vestir calçados, organizar os livros, etc. Isso contribui para o respeito ao que é coletivo e para o exercício da autonomia.
Observando as crianças brincando de salão de beleza, notei que o repertório das mesmas estava “limitado”, conheciam pouco sobre as funções ou atividades de uma cabeleireira no salão de beleza.
A partir dessa constatação, por que não fazer um passeio a um salão de beleza? Seria uma forma de aprender sobre uma profissão e sobre o profissional atuante através da observação e dos questionamentos, depois, no retorno a sala de aula, eu poderia continuar minhas observações para ver que mudanças e enriquecimentos ocorreram após esta intervenção. Um dos primeiros passos para concretizar esta idéia foi o de pesquisar as hipóteses das crianças sobre uma cabeleireira. Ao ouvir suas hipóteses percebi que todos sabem, basicamente, o que uma cabeleireira faz, como cortar o cabelo, lavar e pentear. Perguntei se alguém gostaria de saber algo a mais sobre a cabeleireira, assim, surgiram algumas questões no grupo, tais como:
A1 __Será que ela usa chapinha?
A2 __Vou perguntar se ela usa maquininha.
A3 __Vou perguntar se ela pinta o meu cabelo de cor-de-rosa!
A4 l __Quero que ela passe gel no meu cabelo!
A5 __Eu vou perguntar se ela lava o cabelo.
A6 __Eu só quero ver cortar o cabelo.
A7__ Eu quero cortar o meu cabelo.
A8 __ Eu também quero cortar!
A grande maioria queria saber se ela cortava os seus cabelos.
Combinamos como faríamos a entrevista: cada um faria a sua pergunta a cabeleireira. Esclareci que não seria possível cortar os cabelos neste dia, pois para tanto existe a exigência da presença da mãe. A nossa visita seria para aprendermos sobre o que tem em um salão e também para observarmos a cabeleireira trabalhando.
Enfim chegou o dia do passeio!
Nesse momento o grupo ficou bem descontraído, foram conversando e brincando pelo caminho.
Na chegada fomos bem recebidos pela cabeleireira, que se prontificou em apresentar os seus instrumentos de trabalho, explicando a utilização dos mesmos. Nesse momento o grupo se acomodou ao chão e realizou uma pequena entrevista, perguntando sobre as dúvidas levantadas em sala de aula e sobre outras que foram surgindo.
A aluna A1 perguntou sobre a chapinha e todos puderam conhecê-la, inclusive eu que nunca havia visto uma. Para explicar sobre o que é fazer uma escova nos cabelos uma professora foi voluntária e todos ficaram muito atentos observando, gostaram também de sentir o ventinho quente.
Para responder a pergunta do A5 sobre a lavagem do cabelo, a cabeleireira apresentou o seu chuveirinho, no qual todos puderam por a mão para sentir a água quente e a fria.
Um aluno, que tinha a autorização da mãe, pôde ser voluntário, para cortar o cabelo, assim, a cabeleireira foi cortando o seu cabelo, explicando suas ações, o molhar para facilitar o corte, a maquininha que corta em comprimentos variados de acordo ao tamanho das pecinhas, o gel para deixar o cabelo do aluno A5 para cima, até o ato de passar a escovinha para tirar os cabelos do pescoço e dos ombros.
Quando a cabeleireira terminou de cortar o cabelo do A5, um coro da maioria dos meninos logo surgiu:
__Agora sou eu!
__ Agora é a minha vez!
__ Eu também quero ir!
E para tentar resolver tal situação, tendo também a dificuldade pela falta de autorização dos pais para o corte, e ao mesmo tempo, evitar a frustração de quase todos os membros do grupo, a cabeleireira se prontificou a fazer apenas o “pezinho” com a maquininha, que são pequenos acertos nos cabelos ao redor das orelhas e da nuca, sem alterar o corte. E assim, todos ficaram satisfeitos e felizes.
As meninas não manifestaram o desejo de cortar os cabelos, alegando que estavam deixando crescer.
Ouviam-se algumas crianças comentando que pediriam para mãe trazê-los novamente para cortar o cabelo. Prova de que gostaram do ambiente e principalmente da profissional!
Essa visita foi muito importante, muitos conteúdos puderam ser vistos, pois aprendemos sobre uma nova profissão, ampliamos o repertório cultural, aprendemos também a fazer perguntas, a nos organizar em grupo para um passeio e para uma entrevista, aprendemos ainda a observar, esperar a vez, etc.
E afinal, o que aconteceu no retorno à sala de aula? O passeio surtiu efeitos na brincadeira?
Assim que retornamos do passeio, todos os materiais da brincadeira do faz de conta estavam à disposição, como tecidos, brinquedos, toquinhos, pentes, etc. Com isso, em vários grupinhos, foi surgindo o tema de salão de beleza. Observando as brincadeiras, logo percebi um aumento no repertório das crianças, pois os tecidos foram utilizados sobre os ombros, como havia feito a cabeleireira, os pentes mudaram de significados e tornaram-se maquininhas de cortar cabelo com som e tudo. Notei que eles ficaram atentos para as formas e escolheram objetos cuja forma lembrassem os objetos que queriam trazer para o faz de conta. Algumas meninas transformaram os pentes em escovas, imitando os movimentos da escovação, os toquinhos viraram secadores de cabelo e etc.
Com esta atividade de visita, percebi o quanto é importante a criança vivenciar tais momentos de observação, pois a aprendizagem nessa fase, ocorre através da imitação, assim não faria muito sentido se eu apenas tivesse falado sobre a máquina de cortar o cabelo, porque o seu funcionamento gera som e movimento e apenas através da fala, a criança não teria essa visão, ou experiência.
Através desse relato apresentado sobre a minha prática em relação ao faz de conta, posso afirmar que foi um salto no meu ensinar, porque até então, eu apenas sabia que o faz de conta era importante, mas desconhecia o porque e a finalidade em observá-lo. Foi através das pesquisas e dos estudos sobre a importância do faz de conta que surgiu a sua valorização como recurso pedagógico, e assim, as ações e meu o papel foram sendo reestruturados, pois só existe a transformação da prática quando também o repertório do professor é ampliado, através de estudos teóricos, que passa a fazer sentido, se aproxima do seu fazer pela observação, pesquisa de suas ações e intenções embasados em um referencial teórico. Ou seja, as suas ações se tornam significativas e intencionais quando a teoria embasa a sua prática pedagógica, possibilitando o real desenvolvimento das crianças.