Esta sequência didática é motivada pelo conjunto de orientações teórico-práticas da dissertação “A natureza e importância dos jogos de papéis na educação infantil: contribuições didáticas”, cujo objetivo foi investigar e discutir a importância do jogo de papéis para o desenvolvimento da criança pré-escolar, bem como, o papel da intervenção do professor na promoção desse processo. Assim, nosso propósito é acenar com um caminho metodológico que tornem didáticas as possibilidades de intervenção postas ao professor na atividade de jogo de papéis que se configura como principal no período pré-escolar. como salienta Elkonin (1987; 2009).
Em seus estudos Elkonin (2009) enfatiza a necessidade de intervir no jogo de papel ou protagonizado da criança pré-escolar. O autor relata que em uma dada experiência de passeio ao zoológico, a educadora notou que o simples fato de ter mantido contato com esse espaço, não garantiu que as crianças se sentissem motivadas a trazer para o jogo os elementos visualizados. O que mudou o comportamento das crianças e o interesse em brincar de “zoológico”, foi a importância da ação educativa dirigindo a atenção delas. Afirmou o autor, que somente a partir de uma atuação mais direta e orientadora do educador, chamando a atenção das crianças para as diferentes tarefas dos adultos em seu trabalho, suas formas de conduta em relação ao trato com os animais, o papel dos visitantes, entre outros, é que fez emergir essa temática no jogo de papéis. Assim, essa experiência apresentou a premissa de que diferentes esferas da realidade, possuem influências distintas para o surgimento do jogo protagonizado, na medida em que a criança passa a conhecê-las.
Dessa forma, pontua o autor, de que de nada adianta ter, única e tão somente, à disposição das crianças uma infinita gama de objetos e “brinquedos”, com o propósito de que estes medeiem as ações com o tema, provocando sua forma mais elaborada. É necessário antes, conhecer como fazem os adultos, do que trabalham, seu processo de produção, e as relações que estabelecem entre si.
[...] a base do jogo protagonizado em forma evoluída não é o objeto, nem o seu uso, nem a mudança de objeto que o homem possa fazer, mas as relações que as pessoas estabelecem mediante as suas ações com os objetos; não é a relação homem-objeto, mas a relação homem-homem. E como a reconstituição e, por essa razão, a assimilação dessas relações transcorrem mediante o papel de adulto assumido pela criança, são precisamente o papel e as ações organicamente ligadas a eles que constituem a unidade do jogo. (ELKONIN, 2009, p. 34).
No entanto, para que haja essa apropriação das relações humanas imprescindíveis ao jogo necessita-se intervenção do par mais experiente, no caso, o professor, pois como defende Saviani (2003) é preciso mediar o processo de apropriação do conhecimento, considerando a especificidade da educação escolar, qual seja, “[...] o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (SAVIANI, 2003, p. 13), bem como as formas mais eficazes de lidar com o objeto do conhecimento:
[...] diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo (SAVIANI, 2003, p. 13).
Assim, de forma elementar, pensamos na possibilidade do movimento do conhecimento que busque aprimorar o jogo de papéis, refletindo como princípio orientador do trabalho pedagógico na Educação Infantil os momentos proposto por Saviani (1999), que articula cinco passos entre si, quais sejam: prática social inicial; problematização; instrumentalização; catarse e o retorno à prática social. Não obstante, advertem Teixeira e Agudo (2016) que é necessário entender que a Pedagogia Histórico Crítica é uma teoria que não se relaciona apenas a passos metodológicos que guiam a prática do professor.
Preconizam os autores que o caminho metodológico proposto por Saviani, não segue os princípios da lógica formal. Antes, é preciso compreender sua relação dinâmica e dialética entre ensino e aprendizagem, mediados pelo professor na busca de produzir avanços nos processos psíquicos da criança, o que exige uma compreensão mais profunda de seu interlocutor.
Teixeira e Agudo (2016), salientam a necessidade de conceber o aluno como um sujeito em desenvolvimento, que se transforma a partir das mediações de conhecimentos organizadas pelo professor que modifica qualitativamente sua formação. Trata-se de um trabalho pedagógico com compromisso político, rumo a uma prática social transformadora que vise à humanização da criança.
Empregar os passos da Pedagogia Histórico Crítica requer a análise de que, embora, sejam distintos e que não exista uma correspondência linear entre eles, estão organicamente relacionados e refletem a totalidade do processo ensino-aprendizagem, conforme defende Martins (2013).
Assim, é interessante provocar a discussão de como se organizam as relações sociais, quais são os modelos, os princípios, as normas e os sentidos inerentes ao contexto dessa sociedade e que a criança está começando a perceber e precisa compreender, para que avance em seu desenvolvimento, tendo o papel como sinalizador de mudanças.
É a partir do conjunto de informações e variáveis percebidos na prática da brincadeira da criança (como brincam, quais são seus interesses, quais elementos se encontram à disposição, quais relações estabelecem, entre outros) que deverão ser mediados pelo professor para que haja a apropriação das objetivações humano-genéricas que carecem ser garantidas para o aprimoramento do jogo em todo seu percurso.
O ensino precisa trazer à tona aspectos não observados pela criança, a fim de desvelar a realidade por meio das problematizações, do movimento ainda que embrionário, do pensamento, sem o qual os momentos ou passos da Pedagogia Histórico Crítica esvaem-se de sentido.
Com base nos estudos realizados, elaboramos um percurso de intervenções frente a uma temática “brincadeira de médico”, no intuito de exemplificar um caminho possível, sem a pretensão de esgotar sua complexidade. Acreditamos, no entanto, que existem muitos outros, dos quais, cada professor poderá seguir rumo a garantir situações desencadeadoras de aprendizagem e desenvolvimento da criança, sujeito e destinatário da prática educativa.
“Brincadeira de médico”.
Criança pré-escolar (4 a 5 anos).
O tempo pode variar de acordo com as necessidades, possibilidades e motivação da turma, podendo ser realizada várias vezes até que se esgote o interesse e se atinjam os objetivos propostos.
Profissão de médico
Aprofundar o conhecimento acerca da profissão de médico a fim de repertoriá-la com conhecimentos e experiências que levem as crianças a interpretação com maior desenvoltura, refletindo as ações e atitudes desse profissional e suas relações humanas por meio do jogo de papel.
Defendemos que a ampliação do tema é fundamental. Quanto mais vivências a criança tiver acerca do homem e suas relações sociais, mais suscitará argumentos para jogar e novos temas surgirão saturados de conhecimento humano. Nesse sentido, identificamos e sinalizamos duas formas de intervenção no jogo, sendo: direta - no conteúdo do jogo, ou indireta - nos espaços e materiais disponibilizados.
Pensamos a intervenção a partir da prática social inicial como ponto de partida de toda prática pedagógica, a qual se impõe tanto ao professor como à criança, agentes sociais distintos, segundo afirma Saviani (1999).
A princípio, a compreensão do professor é denominada de “síntese precária”, pois ao mesmo tempo em que pressupõe o domínio do conhecimento a ser transmitido, desconhece a realidade e os saberes de seus alunos. Estes, por sua vez, apresentam uma compreensão “sincrética[1]” do ponto de partida, pois desconhecem a articulação pedagógica de suas experiências sociais com o ensino escolar, ou seja, dependem da qualidade do trabalho educativo que será realizado mobilizando os objetivos, ações e operações para atender suas necessidades de aprendizagem. Pois, segundo Leontiev (2016) o sujeito aprende e se desenvolve por meio da atividade, que diz respeito a “[...]aqueles processos que, realizando as relações do homem com o mundo, satisfazem uma necessidade especial correspondente a ele” (2016, p. 68).
Ao se deparar com a brincadeira das crianças, a configuração dos espaços, os brinquedos e objetos colocados a disposição, o professor poderá focar nas possíveis intervenções, tanto diretas (conteúdo do jogo) como indiretas (espaços e materiais disponíveis), a fim de tornar a brincadeira mais elaborada, compreendendo que é nesse momento que residem os principais problemas a serem identificados, dos quais se buscam as condições necessárias para sua resolução.
Frente ao tema eleito, ao trabalhar a mediação dos referentes da profissão de médico, para além de estereótipos sociais, é que se problematiza toda a análise dessa prática social.
Assim, de forma ativa e problematizadora, poderá se conduzir a leitura de uma história que trate da profissão de médico como desencadeadora de interesse. Sugerimos “O médico do mar” de Leo Timmers. Após esse momento, em rodas de conversas com as crianças, realizar questões motivadoras: O que sabem sobre o trabalho do médico? Quem já foi ao médico? O que ele faz? Como ele faz? Qual sua importância? Quem gostaria de ser médico? Por quê? Outras questões poderão ser aprofundadas sobre as diferentes especialidades, ou ainda, as que considerar pertinente para a temática, inclusive relacionadas à formação e ao acesso a profissão, neste contexto sociocultural. Da mesma forma será possível proceder em relação às características do atendente e do paciente, buscando sempre agregar conhecimentos e vivências necessárias para que as crianças não apenas verbalizem ações, mas conheçam e se apropriem de fato das relações que se estabelecem nessa profissão. “Trata-se de detectar que questões precisam ser resolvidas no âmbito da prática social e, em consequência, que conhecimento é necessário dominar” (SAVIANI, 1999, P.80).
A partir das lacunas de conhecimento detectadas, o professor, por sua posição mediadora há de buscar os meios “[...] instrumentos teóricos e práticos necessários ao equacionamento dos problemas detectados na prática social [...]” (SAVIANI, 1999, p. 103). Desse modo, poderá introduzir: literaturas, desenhos animados, vídeos disponíveis no Youtube (como “Abelhudo: brincando de Médico”), contatar um profissional dessa área que possa explanar sobre a profissão, realizar uma entrevista entre as crianças com o profissional do posto de saúde mais próximo, entre outros, para que as crianças vivenciem novas experiências e tenham repertório para motivar o jogo.
Cabe ao professor instrumentalizar a relação entre o conhecimento e a criança, reorganizando a atividade e introduzindo novos elementos, principalmente objetos de largo alcance[2] ou polifuncionais, para que as crianças improvisem e coloquem desafios à sua imaginação, intervindo também de forma indireta.
[1] De natureza extraescolar que não podem ser confundidos com o nível de desenvolvimento real, mas somente aqueles que se formam na tensão problematizadora da atividade que colocam o pensamento em curso, segundo afirma Martins (2013).
Providenciar materiais que possam ser utilizados pelas crianças para representação do papel de médico, paciente e atendente, como por exemplo: montar um cenário de consultório, com a participação das crianças, ou disponibilizar os materiais em caixas organizadoras para que componham o espaço e organizem a brincadeira entre elas, disponibilizando mesas, cadeiras, blocos ou papeis para receituário, caneta, telefone, embalagens de remédio, etc. Materiais como, estetoscópio, seringas, bandagens, roupas, fantasias, bonecas, bolsas, entre outros. Introduzir objetos polifuncionais que possam servir de substitutos de outros, na interpretação dos papéis: um lápis, por exemplo, poderá servir como injeção, termômetro, etc., tecidos poderão se transformar em lençol para maca, bandagem, entre outros.
É interessante que o ambiente seja rico de materiais, contudo, não em excesso, para que as crianças possam criar a partir das possibilidades postas e elaborem as substituições necessárias.
O papel do professor deve ser de observador atento, que detecta as necessidades de aprendizagem apresentada na brincadeira, bem como os avanços nos papéis desempenhados pelas crianças, a fim de realizar novas propositivas, sempre com o foco de ampliar o jogo e de torná-lo mais desenvolvente.
Espera-se que após as intervenções realizadas, o jogo possa ter evoluído e ganhado novos argumentos na interpretação dos papéis, fruto de uma brincadeira mais elaborada, onde se realiza a . Segundo Saviani (1999 p.80-81), “o momento catártico pode ser considerado como o ponto culminante do processo educativo, já que é aí que se realiza pela mediação da análise levada a cabo no processo de ensino, a passagem da síncrese à síntese”. Ou seja, a apropriação da criança frente ao conteúdo apresentado, onde uma etapa se encerra. Assim, em um processo ascendente, deverá evoluir em todo percurso do desenvolvimento da criança, e na apropriação de novos conhecimentos.
O retorno a pratica social é o momento em que o professor avalia os resultados, as mudanças qualitativas em relação ao jogo, o comportamento da criança quanto a sua linguagem, atenção e outras funções psíquicas que auxiliaram na elaboração de seu processo de conhecimento. Momento em que se verifica como a criança conduziu o papel e suas relações com os demais participantes.
Afirma Saviani (1999), que a prática social inicial e a final são praticamente as mesmas e não o são. É a mesma, enquanto finalidade da prática social. Porém, não é a mesma, pois, pela ação pedagógica mediadora, se alteraram ambos, professor e aluno se transformam, mudando suas relações sobre o conteúdo apreendido. No caso do aluno, é possível perceber saltos qualitativos em relação a seu comportamento, indicando mudanças importantes em seus processos psíquicos. Quanto ao professor, revelam-se também saltos em sua atividade de ensino, pois diante do conhecimento de como se processa a aprendizagem infantil e a melhor forma de conduzi-lo, aprimoram-se suas ações.
[1][1] Segundo Leontiev (2016) são materiais não estruturados como tecidos, sucatas, engrenagens, entre outros, que possibilitam a criação e a imaginação das crianças.
ELKONIN, D. Psicologia do jogo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
________. Problemas psicológicos Del juego em La edad preescolar. In: DAVÍDOV, V. & SHUARE, M. La psicologia evolutiva e pedagógica em la URSS. Moscou:Progresso, 1987.
LEONTIEV, A.N. Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In:
VIGOTSKII, L.S., LURIA, A.R. & LEONTIEV, A.N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 14. ed. São Paulo: Ícone, 2016.
MARTINS, L.M. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados, 2013.
SAVIANI, D. Escola e democracia. 32. ed. Campinas: Autores Associados, 1999.
SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 8. ed. Campinas: Autores Associados, 2003.
“Brincadeira de médico”
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Ler em voz alta uma história do livro: “O médico do mar” de Leo Timmers, que conta a aventura de um médico que entra em um submarino para atender seus pacientes aquáticos, onde o oceano é a sala de espera. Mostra o lado humano e afetivo desse profissional, evidenciando o valor do cuidado e da ciência médica a serviço da vida, bem como das relações de cooperação mútua imprescindíveis ao processo de humanização.
O propósito é despertar o interesse das crianças pela temática.
A história do livro encontra-se também disponível em uma animação produzida por crianças no YouTube no endereço:
https://www.youtube.com/watch?v=D6MEHM81Lu0
Poderá ser desencadeado o interesse com outras literaturas como “Hoje vou ser médica” de Ana Oom – FTD, “Doutora Brinquedos”, entre outros, podendo ainda surgir do relato de uma criança que tenha ido ao médico, ou outras estratégias que julgar pertinente.
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Iniciar a discussão da atividade com questões motivadoras: O que vocês sabem sobre o trabalho do médico? Quem já foi ao médico? O que ele faz? Como ele faz? Qual sua importância? Quem gostaria de ser médico? Por quê? Poderão ser aprofundadas as especialidades ou outras questões que considerar importantes para a temática, como a respeito da formação dos médicos e a disponibilidade destes em postos de saúde, levando em conta a capacidade de compreensão da criança.
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Elucidar palavras novas como: estetoscópio, auscultar, aferição, entre outras que venham a aparecer nas histórias ou conversas, no intuito de ampliar o vocabulário;
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Organizar o espaço para brincadeira e colocar à disposição das crianças objetos e brinquedos que remetam ao trabalho realizado pelo médico;
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Observar como as crianças se organizam para brincar, quais relações estabelecem com os objetos e principalmente entre as demais participantes. Que “modelo de médico” traz para a brincadeira? O que é importante ressaltar no comportamento das crianças? O que é necessário na mediação para superar atitudes equivocadas?
Trazer novos elementos que colaboram para a ampliação do papel, principalmente relacionados ao conteúdo da profissão de médico, podendo ser realizado coletivamente, questões para serem levadas a um determinado profissional da área, entrevistas, vídeos, visitas, relatos, entre outros, para agregar maior conhecimento sobre a profissão e possibilitar a ampliação da temática no jogo de papéis.
Analisar o comportamento da criança no jogo de papéis após as intervenções realizadas, verificando se houve interesse pela temática, em quais aspectos ocorreram avanços e quais as próximas abordagens serão necessárias, sempre no intuito de agregar avanços no repertório de conhecimentos das crianças em relação à complexificação do jogo.
É importante lembrar:
A atividade do jogo de papéis é da criança. Toda mediação deve levar em conta o não rompimento da brincadeira em curso. É preciso buscar o papel que nos cabe nas intervenções, de modo a ampliar o conhecimento e as experiências significativas com o tema, e não transformá-la em uma atividade rígida e extremamente direcionada para fins didáticos, posto que o significativo neste momento é o processo da brincadeira em si, e não um resultado previamente estabelecido.